Fim dos concursos derruba a qualidade e incentiva corrupção

 Fim dos concursos derruba a qualidade e incentiva corrupção

Na formulação da Constituição de 1988, entre os vários dispositivos criados para garantir a qualidade e a transparência nos serviços públicos, um é fundamental porque garante que os cargos serão ocupados sem interferência política e por pessoas qualificadas: o concurso.

Justamente por proteger o bem-estar coletivo, o concurso público é um dos principais alvos da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020, a chamada Reforma Administrativa, elaborada pelo Governo Federal.

Entre as diversas mudanças constitucionais estaria a criação dos chamados “cargos de liderança e assessoramento”, com ingresso sem a necessidade de concurso público e praticamente sem limites.

Alguém pode até perguntar: “mas isso seria diferente dos cargos comissionados que já existem hoje?”

Sim, seria diferente.

Atualmente, os cargos de comissão e as funções de confiança são destinados apenas às funções de direção, chefia e assessoramento.

Funções de confiança só podem ser ocupadas por servidores que ocupam cargos efetivos na administração pública e há um limite mínimo para ocupação de cargos em comissão por pessoas que não são da carreira.

Com isso, pessoas de fora das carreiras ou dos serviços públicos só podem ocupar cargos mais altos nas administrações (ministros e secretários de Estado e direção de ministérios, secretarias, presidências de órgãos, agências, empresas públicas, etc). Na prática, menos de 1% dos cargos são ocupados por pessoas de fora das carreiras.

Por causa da proteção da lei, a maioria das pessoas que assume cargo de chefia vem da própria carreira. Ou seja, geralmente, são pessoas que conhecem o contexto do órgão em que atuam e a função que estão assumindo, têm contato com a realidade dos servidores e entendem as necessidades da população.

Esses limites atuais de ocupação dos cargos por pessoas da própria carreira foram criados para impedir o loteamento total do espaço público, reduzindo as chances de compadrio, coronelismo, apadrinhamento e outros tipos de relações nada transparentes.

Lotear para quem?

Com a Reforma Administrativa, o Governo Federal quer inverter essa lógica.

Os ocupantes dos cargos de liderança iriam substituir os atuais cargos em comissão e as funções de confiança. Mas a proposta vai além.

Não há nada no projeto que limite a ocupação desses cargos por pessoas sem concurso.

Qualquer pessoa poderá assumir essas funções, sem necessidade de comprovar conhecimento, qualificação ou preparo. Basta uma canetada dos governantes.

Agora, pense em algumas situações:

Apadrinhados de políticos corruptos facilitarão esquemas dos governantes

Apadrinhados que terão que repartir parte dos salários com o político que o indicou (o chamado esquema da “rachadinha”)

Apadrinhados que irão impedirão que investigações prossigam

Apadrinhados que irão decidir onde e para quem destinar recursos

Poderíamos citar aqui muitos outros casos, mas com esses exemplos você já consegue entender que todas essas mudanças que o governo pretende implementar servirão apenas para que a corrupção se instale em todas as esferas, órgãos e instituições.

Mas agora vem uma mudança ainda pior: todos os cargos poderão ser ocupados por apadrinhados sem concurso, inclusive cargos técnicos.

Hoje, os cargos técnicos (ou seja, que não são de chefia, direção etc) são ocupados exclusivamente por servidores concursados, que desempenham trabalhos de grande relevância para o Estado brasileiro e para toda a sociedade.

Esses servidores, que ingressaram por concursos públicos dificílimos e muito concorridos, possuem grande qualificação e passam por processos de treinamento e ganhos de qualificação ao longo de suas carreiras. Com o tempo, se tornam mais especializados em suas funções e suas decisões são pautadas pelo bem-estar comum.

Agora, imagine deixar com que todos esses cargos sejam ocupados por aqueles apadrinhados sem qualificação.

Era assim antes (e afetava a qualidade)

Antes da Constituição de 1988, o concurso público não era obrigatório para a maioria das carreiras.

O serviço público era basicamente ocupado por parentes ou amigos indicados por políticos, governantes ou pelos militares (até 1985, durante a ditadura). O resultado era o loteamento dos cargos, ocupados por funcionários que não tinham capacidade nem autonomia para exercer suas funções.

Alguns governos davam cargos até para ex-jogadores de futebol depois que eles se aposentavam do esporte, só para ter uma “celebridade” por perto.

Por isso, antes dos concursos, o serviço público era muito mais limitado. O alcance das políticas públicas era muito menor, assim como a qualificação das pessoas que ocupavam os cargos. Ao final do regime militar, 81% dos servidores não possuíam ensino superior, sendo que 32% não haviam sequer concluído o 5º ano (Educação Infantil).

Hoje, praticamente a metade possui ensino superior e apenas 6% não concluiu a Educação Infantil (esses, em sua maioria, são pessoas que ingressaram antes da Constituição de 1988).

Sem concurso, com corrupção

Outra turma que cresce os olhos para o fim dos concursos são os corruptos. Para notar isso, basta olhar para o passado sombrio da ditadura. Claro que na época o grande público não ficava sabendo, já que havia a censura prévia e a imprensa proibida de noticiar os crimes dos militares.

Mas os desvios foram revelados após o fim da ditadura, especialmente em obras faraônicas que beneficiaram grandes empreiteiras que até hoje são ligadas a casos de corrupção no Brasil.

Se há problemas no serviço público, não é acabando com ele que haverá melhoras, pelo contrário. O segredo é olhar para o passado e aprender que a saída está no caminho oposto, na valorização e no investimento tanto no sistema, como no servidor.

Fonte: É público, é para todos

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